Ir para o conteúdo principal

TRAÇANDO UM PARALELO COM OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS

A reflexão aqui delineada sobre os livros didáticos de física é sustentada sobre o conceito do princípio de obstáculos epistemológicos de Bachelard (1996).

Mas, que obstáculos são esses? Em que aspectos os obstáculos epistemológicos podem ser percebidos nos livros didáticos de física? Como os obstáculos epistemológicos se relacionam com as novas tendências educacionais? É isso que descreveremos a seguir.

Obstáculos epistemológicos do conteúdo eletrodinâmica

O conceito obstáculo epistemológico, desenvolvido por Bachelard (1996), determina os possíveis entraves para a formação do espírito científico. Essa análise está diretamente ligada ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, mas pode servir-nos de parâmetro para uma reflexão análoga quanto ao ensino formal. Nesse processo, o livro didático representa uma das principais ferramentas de construção do conhecimento tanto para o ofício do professor e quanto para a aprendizagem do aluno, portanto, a relevância de avaliarmos o livro didático a partir de pressupostos epistemológicos bem delimitados, pode expor os motivos de algumas dificuldades de compreensão apresentadas pelos alunos no manuseio do livro didático, obstáculos esses muitas vezes não detectados pelos professores.

No dizer de Astolfi (2003, p.33) “Para poder llegar a evitar los errores se debería conocer de antemano y enprofundidadlo que, precisamente, se está aprendiendo con tanto esfuerzo. La mente, aña de Bachelard, solo puede “formar sere formandose”. Ou seja, para Bachelard o conhecimento deve ser algo inerente não somente ao aluno, mas sim, um aprendizado de ambas as partes, tanto professor quanto o aluno.

Bachelard (1996), filósofo que escreveu a obra “A formação do Espírito Científico”, analisa como o pensamento pré-científico enfrenta obstáculos para ascender ao espírito científico. Esses obstáculos são condições psicológicas que dificultam a inserção no pensamento científico, que se daria pela evolução de um estado dominado pelos sentidos imediatos para o plano abstrato das ideias.

Bachelard (1996) apresenta dez tipos de obstáculos epistemológicos, mas consideraremos apenas cinco deles: a experiência primeira, o conhecimento geral, o obstáculo animista, o obstáculo realista e o obstáculo verbal.

A experiência primeira, segundo Bachelard (1996), é marcada pela certeza e ausência de questionamento. Poderia ser reduzida às compreensões consideradas “óbvias” e que por isso desencorajam a crítica.

Uma vez entregue ao reino das imagens contraditórias, a fantasia reúne com facilidade tudo o que há de espantoso. Faz convergir as possibilidades mais inesperadas. Quando o amianto incombustível foi utilizado para fazer mechas de lampião duráveis, pensou-se ter conseguido “lampiões eternos”. (BACHELARD, 1996, p. 45)

Fazendo uma observação ao conteúdo da eletrodinâmica, podemos salientar que algumas imagens poderiam ser consideradas como obstáculos para o aluno, pois é comum a presença, nos livros didáticos, de diversas estratégias pretensamente utilizadas para ‘facilitar’ a compreensão dos leitores. Muitas destas, como analogias, metáforas, imagens, modelos, entre outros, amplamente utilizadas por docentes.

Ainda que empregadas com a intenção de “facilitar” a compreensão de um determinado assunto, na realidade não auxiliam verdadeiramente, salvo em casos específicos muito bem trabalhados em sala de aula. O conhecimento comum seria um obstáculo ao conhecimento científico, pois este é um pensamento abstrato.

Na figura abaixo, retirada de um dos livros observados, podemos verificar esse tipo de obstáculo, onde as informações subscritas interferem no questionamento que o aluno, possivelmente poderia fazer sobre o assunto. A figura aparece no livro no momento que se conceitua inicialmente o conteúdo eletrodinâmico.

image-1634046806066.png

Figura 1: Eletrodinâmica

Fonte: Livro de Física 3

Um aluno poderia imaginar, na observação da figura, que fenômenos elétricos ocorrem simplesmente ao se acenderem as luzem de uma cidade, e ao simples fato de estar conectado a uma fonte de energia, o que não se pode considerar com verdade única, pois o fenômeno vai muito além do que e demonstrado na figura.

Os principais fenômenos embutidos no conceito da eletrodinâmica poderiam ser mais bem explorados se na figura houvesse, por exemplo, indicações de onde começa o movimento ordenado, com direção e sentido preferenciais que originaliza a corrente elétrica.

O simples fato de mostrar uma figura estática pode causar uma interpretação errônea nos alunos. Deve-se procurar impedir que aconteçam apenas satisfações e admirações promovidas pelas imagens, preocupando-se mais com os fundamentos explicativos dos fenômenos presentes.

Outros exemplos podem ser demonstrados nas figuras abaixo, onde se verificam a camuflagem de informações importantes e que na maioria das vezes quando visualizadas pelos alunos, não promovem nenhum tipo de questionamento sobre o tipo de fenômeno envolvido.

Segundo Bachelard (1996), uma ciência que aceita imagens é vítima de metáforas e experiências repletas delas são, na realidade, sem grande valor se não for extraído o abstrato concreto.

Generalizar um fenômeno pode bloquear o interesse por um estudo mais aprofundado, deixando a generalização causar a falsa impressão de uma compreensão facilitada, mesmo que momentaneamente. Por mais que a figura apresente uma legenda, mesmo assim o aluno, ao ler, sem ter os conhecimentos necessários, poderá interpretar de forma errada o fenômeno, o que comumente acontece, e poderá levar essa compreensão para o cotidiano.

image-1634046831322.png

Figura 2: Corrente Elétrica.

Fonte: Livro de Física 3.

Quanto ao obstáculo (ii) conhecimento geral, o autor diz que este pode se tornar um obstáculo para a formação do espírito científico, pois se apresenta como uma lei geral que forçadamente intenta facilitar a compreensão do aprendente, mas que na verdade não consegue dar conta de explicar o fenômeno em sua totalidade e especificidades. Logo, acaba por aniquilar a curiosidade tão essencial para a construção do conhecimento pelo aluno através de generalizações acríticas.

Com a satisfação do pensamento generalizante, a experiência perdeu o estímulo. Em suma, mesmo seguindo um ciclo de ideias exatas, percebe- se que a generalidade imobiliza o pensamento, que as variáveis referentes ao aspecto geral ofuscam as variáveis matemáticas essenciais. (BACHELARD, 1996, p. 72)

Como exemplo desse obstáculo encontrado em um dos livros didáticos observados, pode-se destacar a figura a seguir, que retrata o sentido da corrente convencional, mas que no decorrer do conteúdo do livro pouco não se aprofunda o porquê desse sentido dito convencional. A origem desse fato pouco ou quase nada é explicado nos livros didáticos.

O aluno, por sua vez, aceita esse conceito e geralmente não questiona o motivo que originalizou esse conceito. No intuito de continuar investigando esse obstáculo, encontramos o mesmo entrave em outros livros didáticos. Há uma conceitualização do sentido real e do sentido convencional, mas não há uma explicação consistente quanto ao fato histórico, e o principal motivo pelo qual ainda se usa o termo “sentido convencional da corrente”, ou seja, não há uma explicação científica para isto.

image-1634046863583.png

Figura 3: Sentido convencional da corrente elétrica

Fonte: livro de Física 3.

O autor apresenta o obstáculo animista como aquele que se utiliza de atributos notadamente humanos ou biológicos para descrever fenômenos ou conceitos. Eles são para o autor um impedimento para a abstração, requisito do conhecimento científico.

Como se vê, longe de dirigir-se para o estudo objetivo dos fenômenos, a tentação maior é de pelas intuições animistas individualizar os fenômenos e acentuar o caráter individual das substâncias marcadas pela vida. (BACHELARD, 1996, p. 206)

Observe que na figura a seguir, podemos identificar expressões comumente usadas nos livros de física, onde se faz comparação entre o fenômeno natural com algum movimento humano.

image-1634046892421.png

Figura 4: Condutor

Fonte: Livro de Física 3.

Para o aluno, tal analogia poderá comprometer sua interpretação desse fenômeno, abrindo espaço para interpretações e comparações equivocadas. Uma das preocupações de Bacherlad (1996) é justamente quanto à compreensão do que se está sendo comparado, ou seja, trazer vida e sentimento a um fenômeno natural.

(...) preocupação constante de comparar os três reinos da Natureza, às vezes a respeito de fenômenos muito especiais. Não é apenas um jogo de analogias, mas a real necessidade de pensar de acordo com o que imaginam ser o plano natural. Sem essa referência aos reinos animal e vegetal, os estudiosos teriam a impressão de trabalhar sobre abstrações. Assim, (...) Os três reinos são, com toda a evidência, princípios de classificação muitíssimo valorizados. Tudo o que foi elaborado pela vida carrega essa marca inicial como valor indiscutível. (BACHELARD, 1996)

Bachelard (1996, p. 184) diz ainda que o obstáculo realista se caracteriza por uma simples descrição do real, do concreto, sem pretensão de se avançar para o real e que por isso, fixa-se em analogias e imagens

[...] Ora, o melhor meio de fugir às discussões objetivas é entrincheirar-se por trás das substâncias, é atribuir às substâncias os mais variados matizes, é torná-las o espelho de nossas impressões subjetivas. As imagens virtuais que o realista forma desse modo, admirando as mil variações de suas impressões pessoais, são as mais difíceis de afugentar. (BACHELARD, 1996, p. 184)

Na figura retirada de um dos livros didáticos analisados, observa-se um claro exemplo do obstáculo realista. Onde se percebe que um fenômeno conhecido pelo seu movimento e observado por uma imagem estática.

image-1634046984969.png

Figura 5: Movimento das cargas

Fonte: Livro de Física 3

Para o leitor que se utiliza do livro didático como fonte auxiliar de assimilação do conhecimento, cria-se um bloqueio na real manifestação do conceito. E se pode ter a falsa interpretação de que mesmo sem uma diferença de potencial há corrente elétrica, o que não necessariamente acontece em um movimento ordenado. Ou ainda poderá imaginar, através da observação da figura, que as bolinhas que representam as cargas elétricas, ao sair do cano transparente são descartadas, e que o movimento acaba o que na verdade, não acontece enquanto há uma diferença de potencial. Assim, não fica claro na imagem a existência da diferença de potencial, condição para que haja uma corrente elétrica.

Nos livros de física que observamos, verificamos alguns casos em que as imagens tratam apenas do concreto e impedem que o conceito seja ultrapassado. Não há uma preocupação de conduzir o estudante para um plano mais abstrato de compreensão, apenas apresentam-se as imagens e analogias para a descrição do real.

Nas palavras de Bachelard (1996, p. 45), “uma vez entregue ao reino das imagens contraditórias, a fantasia reúne com facilidade tudo o que há de espantoso, fazendo convergir às possibilidades mais inesperadas”.

O obstáculo verbal segundo Bachelard (1996) é caracterizado pelo uso abusivo de analogias, seja por meio de imagens ou palavras, para demonstrar uma ideia ou representar um fenômeno. Esse tipo de obstáculo dificulta a aprendizagem do aluno ao reduzir um fenômeno complexo e rico a uma imagem ou palavra que não lhe representam integralmente.

O perigo das metáforas imediatas para a formação do espírito científico é que nem sempre são imagens passageiras;levam a um pensamento autônomo; tendem a completar-se, a concluir-se no reino da imagem. (BACHELARD, 1996, p. 101)

image-1634047045594.png

Figura 6: Conceito de eletrodinâmica

Fonte: Livro de Física 3

Como podemos observar na figura retirada de um dos livros didáticos, a palavra “caminho”, da forma como é empregada no texto, pode causar uma ideia de que corrente elétricas deixam rastro e podem ser percebidos a olho nu. Ao se utilizar do senso comum para exemplificar conceitos, que na verdade dependem de termos que representem a complexidade do fenômeno, construímos um obstáculo verbal para o aluno. Eles podem causar entraves para a assimilação de certos conhecimentos científicos, no caso especifico, na eletrodinâmica. Estes obstáculos levam o aluno a um entendimento equivocado de um fenômeno, o que impossibilita um conhecimento mais amplo de determinado assunto e este tipo de estratégia irrefletida, é principalmente prejudicial quando os conceitos que estão sendo utilizados para exemplificação foram trabalhados anteriormente e a palavra utilizada só servirá para facilitar o entendimento do mesmo.

Os obstáculos e as novas tendências educacionais

Alguns obstáculos citados anteriormente como a experiência primeira, a generalização de conceitos e os obstáculos verbais, que estão presentes nos livros didáticos, na visão de Bachelard (1996), se constituem em impedimento para o desenvolvimento do conhecimento científico.

Para este filósofo da ciência é preciso que os professores estimulem a formação do conhecimento científico entendendo inclusive, que os alunos não chegam à sala de aula vazia. Muitos conhecimentos dos estudantes são oriundos das “experiências primeiras” adquiridas por convivência externa à escola e são considerados conhecimentos do senso comum. Se faz necessário romper com essa forma de conhecimento, trocando o senso comum pelo conhecimento científico.

Para que isso aconteça é preciso instigar os alunos, levando-os a uma participação mais dinâmica, crítica e investigativa, realidade bem distante quando se observam que em muitos momentos o senso comum é reforçado nos livros didáticos propostos, questões estas que incentivam o marasmo intelectual do estudante. De acordo com Bachelard (1996), a ciência moderna no ensino regular abre pouco espaço para discutir a história das ideias científicas, dando ao estudante a impressão de que o conhecimento é construído de maneira espontânea e não por provocações. De fato, o aluno encontra tudo praticamente pronto, como ter espaço para formular ideias novas?

Para Bachelard (1996), a aprendizagem de um novo conhecimento é algo que requer mudança de cultura. Para romper e mudar é preciso que o professor passe ao aluno a ideia de que a ciência moderna precisa ser reconstruída, questionada, repensada. Não que os conteúdos consolidados nos livros didáticos não tenham sua utilidade, pelo contrário, são um primeiro passo de inserção no mundo científico. A partir desses conteúdos podem ser formuladas problematizações, que para Dominguini & Silva (2010) são a chave para que professores incentivem seus alunos a romper com o conhecimento comum e adentrar no conhecimento científico.

Atualmente contamos com auxílio de tecnologias digitais para contribuir com esse processo. Blikstein & Zuffo (2003) propõem princípios para o desenvolvimento de ambientes de aprendizagem alternativos, que utilizem as tecnologias como matériaprima de construção de conhecimento e não só como mídia de transmissão de informações. O mesmo princípio pode ser aplicado aos livros didáticos. Já dispomos inclusive, de livros didáticos que incentivam o aluno a interagir com sites para aprofundar a aprendizagem. Mas,é preciso ir além, que o livro didático sugira situações problemas que favoreçam a construção de novos conhecimentos.

Além disso, para Blikstein & Zuffo (2003), semelhante ao pensamento bachelardiano, é preciso também substituir a transmissão unidirecional, passiva de informações por maior interação entre professor e aluno.Sobre isso os autores propõem que:

No lugar da reprodução passiva de informações já existentes, deseja-se cada vez mais o estímulo à criatividade dos estudantes. Não ao currículo padronizado, à falta de acesso à educação de qualidade, à educação “bancária”. Sim à pedagogia de projetos, à educação por toda a vida e centrada no aluno. (BLIKSTEIN & ZUFFO, 2003, p.3)

A pedagogia de projetos ou a aprendizagem baseada em projetos é uma metodologia inovadora que muda o papel do professor e aluno, o qual ao invés de ter um papel passivo passa a ter uma participação mais ativa no processo ensino aprendizagem. Partindo desse princípio, os livros didáticos poderiam ser desenvolvidos para estimular essa forma de aprendizado contribuindo inclusive para o desenvolvimento da criatividade. (BUCK INSTITUTE EDUCATION, 2008).

Os livros didáticos devem interagir com mundo tecnológico, de forma que instigue o aluno por mais conhecimento. Por exemplo, alguns livros didáticos podem mostrar determinados conteúdos por meio de realidade aumentada, que transportamos estudante para algo mais real, melhorando sua compreensão dos conteúdos.

Blikstein & Zuffo (2003) sugerem que os próprios alunos criem documentação didática alternativa de forma descentralizada para ajudar outros estudantes, ao invés de centralizar a produção de material didático a um grupo específico. É preciso “[...] estimular as possibilidades e a responsabilidade cidadã de cada aprendiz”. (BLIKSTEIN & ZUFFO, 2003, p.17).

Para Souza (2016), o livro didático tem sido objeto de muitos debates no mundo acadêmico, pois deveriam se aproximar cada vez mais das realidades científicas, sociais e tecnológicas. No entanto o que se percebe é que alguns conteúdos são abordados de forma superficial sem se conectar a realidade do aluno. Ainda de acordo com Souza (2016), os livros são indispensáveis para os alunos e professores, principalmente para escolas públicas, onde não há outros recursos para contribuir com a construção do conhecimento. Dessa forma, os livros de física devem ser repensados para poderem ser usados no desenvolvimento do conhecimento crítico do estudante. Mas enquanto isso não ocorre é necessário repensar sua utilização.

São muitos ainda os desafios para melhoria dos materiais didáticos, mas as ferramentas já existem, porém é preciso incentivo e análise por parte de todos os lados interessados, seja o lado educacional, político, empresarial, tecnológico, escolar (direção), docente, considerando inclusive a percepção do aluno.