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3 | A REDE SOCIOTÉCNICA E A TECITURA DE CONHECIMENTOS

Apoiados nos preceitos da Teoria Ator Rede (TAR) também conhecida pelo seu acrônimo na língua inglesa (ANT) e, amparados na Legislação de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e na Lei de Educação Ambiental (9.795/99), de posse do caderno de campo constituído no decorrer da investigação, somado às narrativas dos sujeitos que habitam o curso de bacharelado em Educação Física, às visitas técnicas realizadas, aos artigos debatidos, aos vídeos assistidos e aos DADOS produzidos pelos estudantes e por fim, à plataforma digital Edmodo, passaremos a discutir o cenário que compôs a rede sociotécnica de humanos e não-humanos (actantes) do estudo em questão e de modo específico aos entrelaçamentos de saberes ambientais que promoveram a tessitura singular dos profissionais de Educação Física participantes da pesquisa.

Em consonância com o professor da disciplina preparamos materiais e estratégias pedagógicas voltadas ao tema educação ambiental e disponibilizamos na plataforma Edmodo. À luz da TAR e das narrativas de experiências do vivido descreveremos as produções localizadas no ambiente digital Edmodo onde foram disponibilizadas para os estudantes, duas atividades. Tais atividades foram realizadas no próprio ambiente digital de ensinoaprendizagem e tiveram o intuito de levar os estudantes a uma reflexão sobre a educação ambiental numa perspectiva emancipatória (SANTOS, 2002).

Esperava-se que essa provocação prévia entre os actantes no ambiente digital, possibilitasse encontros presenciais (aula presencial) onde o professor pudesse aprofundar as discussões iniciadas no Edmodo aproveitando-se dos benefícios advindos da metodologia da sala de aula invertida. Tal fato ocorreu enriquecendo e, de certa forma, melhor aproveitando o tempo escasso que o professor da disciplina tem para entregar uma grande quantidade de conteúdo do ementário. O professor aproveitou o tempo ganho com a inversão da lógica da sala de aula para aprofundar as discussões acerca do tema: Educação Ambiental.

Mergulhados (ALVES, 2001) no cotidiano das aulas presenciais pudemos perceber as dificuldades que o docente enfrenta na relação tempo e quantidade de conteúdo a desenvolver. Isto posto descreveremos os entrelaçamentos que os actantes produziram sob o tema Educação Ambiental no ambiente digital Edmodo.

3.1 Atividade 1

Na primeira atividade denominada “Armadilha paradigmática: reflexões do profissional de educação física frente aos desafios da educação ambiental”, os estudantes foram estimulados a ler o artigo intitulado “Armadilha Paradigmática” do Geógrafo Mauro Guimarães (2006). Após a leitura eles deveriam fazer uma postagem, com no mínimo 150 palavras e no máximo uma lauda, com as reflexões acerca do mesmo; deveriam também escolher a postagem de dois dos seus colegas para fazer uma réplica e uma tréplica em cada uma delas; por fim, deveriam responder a réplica enviada por um dos seus colegas sobre a sua postagem. Dos 65 estudantes cadastrados na plataforma Edmodo, 56 que correspondem a 86%, completaram a tarefa e cumpriram com toda a atividade proposta gerando 268 interações/entrelaçamentos.

A provocação intrínseca na primeira atividade proposta tinha a intenção de descrever como se dariam as discussões com a participação dos actantes acerca de um texto que aborda a concepção da educação ambiental pautado nas ciências sociais com viés crítico e emancipatório. As movimentações nas tramas da rede afloram por intermédio das hibridações e locomoção diversa na direção de qual realidade vai sendo produzida.

Assim, considerando que a Resolução nº. 007/2004 do CNE, que versa sobre as Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em Educação Física em nível superior aponta para a necessidade da formação do Profissional de Educação Física estar em consonância com as questões socioambientais, vamos descrever a partir da rede sociotécnica, o modo como os estudantes foram tecendo, em rede, tais conhecimentos.

As narrativas originadas nas postagens da atividade 1 no Edmodo revelam indícios (GINZBURG, 1989) da produção dos sujeitospraticantes:

Estudante 1 - O texto trata de como as questões ambientais devem ser tratadas por todos, tanto no ambiente escolar quanto fora dela...porém as atitudes do ser humano em relação ao meio ambiente não mudaram muito... as pessoas continuaram a consumir exageradamente diversos produtos sem se preocuparem com o lixo que produzem[...].

Estudante 2 - [...] isso, nosso país visa somente atender o consumismo, onde o capitalismo está sempre em primeiro lugar...onde estão as Leis? Porque não são respeitadas? E o poder público? [...] – Grifos do autor.

Estudante 3 - Concordo, vejo que o capitalismo é um grande empecilho para as questões ambientais, tendo em vista o lucro, grandes empresas e até mesmo governos não aderem tecnologias ambientais, pois geram muita despesa. E com o petróleo sendo a matriz energética do mundo, movimentando milhões, se torna inviável a proibição do uso do mesmo. – Grifos do autor.

Conforme explicitado, o estudante 1 apresenta em sua narrativa, aproximações à tendência antropocêntrica, pois sugere que o homem tão somente seria capaz de resolver todos os problemas ambientais apenas mudando seus hábitos. Não temos, ao trazer a narrativa do estudante, o intuito de categorizar ou classificar tais impressões, mas acompanhar e descrever as redes em que os estudantes estão inseridos e, posteriormente, acompanhar os movimentos estabelecidos pelas trocas e compartilhamentos. Dessa forma, é fundamental compreendermos a ótica instaurada pelo estudante.

Para Reigota (1991) a referida concepção é limitada, pois concebe que o homem está no centro das relações ambientais, e, portando, o meio ambiente seria o provedor das necessidades humanas. Tal perspectiva nos move a compreender a razão pela qual a sociedade se preocupa apenas com a sua geração.

Como podemos perceber o estudante 2 ao replicar a postagem anterior, amplia a rede sociotécnica complexificando a concepção de meio ambiente. Na referida narrativa, percebemos um movimento que acrescenta à rede outros entrelaçamentos visibilizando actantes que não foram mencionados anteriormente. Para o estudante 2 as leis e o governo, precisariam agir para minimizar os impactos ambientes advindos de um modelo de sociedade capitalista.

De outro modo, o estudante 3, entra na rede como actante, explicitando suas concepções de EA em relação ao texto e dialogando com as postagens anteriores. Tal ação nos remete a noção de tecitura de conhecimentos em rede explicitada abaixo:

[...] são redes nas quais estão presentes as escolhas, os desejos e as possibilidades políticaspráticasexpressivas dos sujeitos neles envolvidos, tanto na definição formal e geral do que deve ser ensinado quanto circunstancialmente, em função das especificidades locais, naquilo que efetivamente se faz. Oliveira (2013, p. 376).

Interessante aproveitarmos a ótica da TAR e as narrativas, para perceber que um novo laço é atado a rede sociotécnica quando o estudante 3 interfere na rede, nos permitindo encontrar evidências (GINZBURG, 1989) do questionamento do modelo social dominante na sociedade capitalista. Dessa forma, percebemos que ao lançar a ideia inicial, o estudante I produz um incômodo nos estudantes 2 e 3 que desencadeiam diálogos que viabilizam o compartilhamento e o diálogo em rede.

Neste estudo, a simetria não se apresenta na perspectiva da equidade, igualdade, mas na proposta elaborada pelo autor que procura romper com a dicotomia imposta pela racionalidade moderna evitando os dilemas suscitados pela oposição entre natureza/ cultura, homem/natureza, dentre outros, por isso o uso de humanos e não-humanos.

Há conjuntos mais ou menos estáveis que se interpenetram e constituem associações para determinada ação nas quais localizadores ou articuladores e plugins (LATOUR, 2012) colocam em partilha tempos e lugares distintos. Cabe ao pesquisador social sair da armadilha de ter que escolher o seu lugar de análise, seja a partir do “macro” (o global, o contexto, a estrutura, a lei), seja a partir do “micro” (a agência individual, o interacionismo, o meio ambiente local). Pela comodidade de ter uma escala definida (um polo de observação fixo), o analista faz desaparecer a dinâmica social. As associações não mais podem ser vistas já que rastros dos actantes são apagados em prol de uma resolução fixa de um “espaço” geral, ou de um “lugar” particular. No entanto, a ação dos actantes pode ser vista se partimos de uma espacialização plana, sem divisões de níveis e sem grandezas, como sugere o autor.

Considerando que a TAR menciona que a ciência, como prática social de produção de conhecimento, é a interação entre os actantes e em decorrência as contingências peculiares do laboratório (LATOUR, 2012), seguiremos com a descrição etnográfica das cadeias de eventos e práticas que constituíram o laboratório deste estudo.

3.2 Atividade 2

Na atividade dois, postada no ambiente digital de aprendizagem Edmodo, os estudantes foram estimulados a, em grupo, assistirem ao vídeo intitulado “A história das coisas”. Cabe frisar que aqui o vídeo é concebido como um ator, pois é ele que provoca um movimento, se responsabiliza pela ação.

Para reforçar tal ótica, gostaria de trazer para nossa reflexão os apontamentos de Ingold (2012, p. 112):

Sentado no meu escritório enquanto escrevo, parece evidente que me encontro cercado de objetos de todo tipo: da cadeira e mesa que sustentam meu corpo e meu trabalho ao bloco de notas no qual escrevo, à caneta na minha mão e os óculos que se equilibram sobre meu nariz. Imaginemos por um instante que cada um desses objetos desaparecesse como por encanto, deixando apenas o chão, as paredes e o teto, vazios. Não posso fazer nada, a não ser ficar em pé ou andar sobre as tábuas do chão. Uma sala sem objetos, poderíamos concluir, é praticamente inabitável. Para que ela esteja pronta para qualquer atividade, ela deve ser mobiliada. Como sugerido pelo psicólogo James Gibson (1979) ao introduzir sua abordagem ecológica para a percepção visual, o mobiliário de um cômodo inclui as affordances que permitem ao morador realizar suas atividades quotidianas: a cadeira convida e permite sentar; a caneta, escrever; os óculos, enxergar; e por aí vai.

Nesta ótica, cabe salientar que o vídeo, ao entrar na rede, acarreta um movimento que acrescenta alterações nos conhecimentos produzidos pelos estudantes.

De forma articulada ao vídeo solicitamos aos estudantes que realizassem uma produção textual coletiva, devendo um dos componentes postar uma produção em nome do todo o grupo. As reflexões deveriam estar relacionadas ao conceito de “Armadilha Paradigmática” desenvolvido na primeira atividade no ambiente digital. Neste alicerce iniciamos a descrição das narrativas dos grupos:

GT 1: [...] o vídeo nos mostra a história por trás desse nosso sistema capitalista e consumista... o desejo por “ter” sempre mais passou a ser um vício da sociedade atual. Nossa natureza está sendo esmagada em prol do consumo, do dinheiro, da ganância [...][...] um sistema de consumo que ninguém consegue derrubar.

GT 2: Vivemos em um mundo finito, onde implantamos um sistema linear que está destruindo completamente todos os recursos naturais presentes nele... O governo, que tem poder para mudar isso tudo simplesmente não faz nada. Tapam os olhos para um grande problema mundial. Somos a cada dia que passa mais induzidos ao consumo.

GT3: O texto vem nos alertar sobre o ciclo do consumo e como isso vem afetando nosso meio ambiente [...][...] Porém não paramos aqui, os produtos vão sendo inovados que vamos sempre querendo inovar também fazendo com que os produtos “ultrapassados” sejam jogados foras para podermos comprar o novo e nesse momento a mídia acaba sendo a vilã de tudo, pois a todo o momento vemos propagandas que estamos com roupas feias, sapatos que não são dá moda [...] Como educadores temos que montar uma nova estratégia de conscientização para mudar de uma vez esse ciclo vicioso que estamos contribuindo.

Até que ponto o vídeo reproduziu a visão conservadora de meio ambiente explicitada na narrativa do grupo?

O que buscamos salientar é que na explanação do grupo I, nos parece que ocorre uma aproximação à ótica conservacionista de Sauvé (2005). Para a autora, a perspectiva conservacionista se preocupa com a conservação da natureza em quantidade e biodiversidade ao modo de uma gestão ambiental. Sauvé (2005) também considera que esta concepção se aproxima dos programas ambientais centrados no princípio dos 3R`s: Reduzir, Reutilizar e Reciclar. Nesse sentido o Ministério de Meio Ambiente do Brasil acaba por apoiar e até mesmo incentivar essa perspectiva conservacionista por meio de uma publicação em seu site oficial (http://www.mma.gov. br/component/k2/item/7589?Itemid=849) onde afirma que:

Um caminho para a solução dos problemas relacionados com o lixo é apontado pelo Princípio dos 3R’s - Reduzir, Reutilizar e Reciclar. Fatores associados com estes princípios devem ser considerados, como o ideal de prevenção e não-geração de resíduos, somados à adoção de padrões de consumo sustentável, visando poupar os recursos naturais e conter o desperdício.

Voltando nossas atenções para as conexões da rede sociotécnica, nessa segunda tarefa percebe-se que um debate mediado pelo professor e logo após a utilização de um actante (o vídeo) que impacta nos conhecimentos tecidos em rede, faz-se necessário para despertar reflexões importantes nos estudantes. No caso da atividade dois esses entrelaçamentos não foram previstos e isso, de certa forma, colaborou para um entendimento reducionista do tema trazido pelo vídeo.